Evolução Histórica da Odontologia

No mês em que comemoramos o dia do Cirurgião-Dentista, um artigo que reflete bem sobre a atual situação da Odontologia publicado na Revista de Odontologia da Unesp. Uma análise profunda sobre como chegamos até aqui, leiam um trecho:




"Nos tempos mais remotos, o exercício profissional da Odontologia se regulava sob a lógica da corporação de ofício, quando a figura do profissional era representada nas imagens de barbeiros e curandeiros. Estes evocavam ao sobrenatural para a solução dos problemas; já aqueles, além das atividades de barba e cabelo, eram também, sangradores.


Em meados do século XIX, o francês Pierre Fauchard tirou o caráter empírico da Odontologia, transformando-a em ciência e garantindo uma maior visibilidade e respeito à profissão. De todo o processo iniciado com Fauchard até os anos 1930, ocorreu a legalização da profissão, impulsionada pelo mecanismo da 'diplomação universitária', no período de desenvolvimento do capitalismo. Isto possibilitou o aumento de oferta e consumo de serviços de saúde, criando um sólido mercado de trabalho e, também, um processo de valorização da Odontologia enquanto prática social.

Entre os anos 1930 e os anos 1970, a Odontologia vivenciou sua fase de tecnificação, com uma proliferação crescente de eventos científicos e, simultaneamente, a formação de uma poderosa indústria de equipamentos, insumos e medicamentos médico-odontológicos, acompanhando o desenvolvimento capitalista nacional.

Desde então, o ensino da Odontologia, caracterizado pela abordagem tecnicista e organicista, é identificado com o modelo biomédico de atenção à saúde. Segundo Capra (1982), esse modelo biomédico supervaloriza o aspecto individual sobre o coletivo, a especialização sobre a abordagem clínica generalista, a concepção estática do processo saúde-doença, a assistência curativa sobre a prevenção e promoção de saúde, e a mercantilização do ato odontológico.

Essa concepção de ensino influenciou, também, a prática odontológica, voltada para o consultório particular e a venda de serviços no campo privado. No entanto, cabe aqui ressaltar que:


[...] toda prática profissional é o resultado de uma construção social, e, portanto, não é somente produto do que se pratica ou do que ensina nas universidades, configurando-se o ensino ao mesmo tempo o produtor do conhecimento e o produto de uma multiplicidade de processos gerados e desenvolvidos no conjunto da sociedade.



Sendo a prática profissional resultado de construção social, é compreensível que a valorização da sociedade pela atenção cada vez mais especializada, aliada à exacerbação das virtudes egocêntricas no mundo globalizado e competitivo, por exemplo, contribuam para a manutenção desse cenário de ensino e prática profissionais. Este panorama contrasta com um quadro de saúde bucal preocupante no país, uma vez que nele coexistem mais de 20 milhões de desdentados e cerca de 240 mil cirurgiões-dentistas.


Dentro desse modelo de atenção médico-privatista, a Odontologia no Brasil viu intensificar, nas últimas décadas, uma crise de mercado sem precedentes, impulsionada por um misto de fatores, sejam eles a proliferação de novos cursos, as próprias leis de oferta e procura do mercado, e até mesmo a desvalorização da profissão fora e dentro da própria classe.

Dos anos 1930 aos anos 1960, quando a Odontologia vivenciou sua era de consolidação como profissão e, principalmente, entre os anos 1960 e início dos anos 1980, quando ocorreu sua expansão (chamada por alguns estudiosos de 'golden age' da Odontologia), a categoria enfatizou a Esfera Privada, concebendo o exercício clínico liberal como espaço privilegiado para a organização de suas práticas. Isso significa que a história da profissão sempre foi mediada pela lógica da mercadoria, ou seja, a busca da redução de todas as ações e medidas à forma de serviços passíveis de compra e venda no mercado. Diante dessa realidade, criaram-se mecanismos de concorrência na busca de se equacionar oferta mediante a procura.

Assim, movimentos concorrenciais elevaram os serviços odontológicos aos seus valores máximos, por meio de mecanismos de diferenciação profissional - e o culto à especialização daí advém - como forma de diferenciação comercial. Tais mecanismos mostraram-se positivos, até então, já que enfatizaram a busca contínua pelo conhecimento.

Com o passar do tempo e o aumento de profissionais no mercado, além da conjuntura política-econômica-social vigente, o valor máximo passou a ser algo impossível de ser praticado. Foi quando se iniciou uma corrente de profissionais que lançaram mão de mecanismos de diferenciação profissional com estratégias concorrenciais negativas, praticando valores mínimos dos serviços prestados, tecnificando cada vez mais a prática odontológica (fazendo valer a máxima 'time is money'), aceitando os valores ínfimos pagos por boa parte dos convênios odontológicos, e se colocando sujeitos a toda sorte, dentro de um mercado caótico.

Frente à crise instalada (e como reflexo da mesma), nas instituições públicas de ensino, houve, na década de 1990 e início dos anos 2000, uma diminuição acentuada da concorrência (candidatos por vaga) para os cursos de Odontologia. Ao mesmo tempo, porém, houve um crescimento gritante de instituições privadas de ensino superior que oferecem os cursos e colocam, a cada ano, centenas de profissionais no mercado, sem ter havido planejamento sobre a capacidade de esse mercado absorver tal incremento.

A propósito, esses profissionais lançados à deriva nesse mercado em dissolução - quer sejam oriundos de instituições privadas, quer sejam de instituições públicas - quase nunca foram estimulados a refletir sobre a sucessão de fatos que culminou na realidade com que, por ora, se deparam. E, com isso, eis mais uma crise instalada: a da própria classe, que se frustra com a realidade encontrada e não se sente (mas estaria?) preparada para enfrentá-la."


Referência

FERREIRA, N. P.; FERREIRA, A. P.; FREIRE, M. C. M. Mercado de trabalho na odontologia: contextualização e perspectivas. Rev. odontol. UNESP. 2013, vol.42, n.4, pp. 304-309.



Postagens mais visitadas deste blog

Diamino fluoreto de prata, o Kamikaze da cárie!

Chupeta, usar ou não usar? Eis a questão!

Diabetes Mellitus, qual a melhor conduta Odontológica?